Apesar de cada vez mais se afirmar no setor veterinário, a enfermagem veterinária é ainda uma profissão relativamente recente em Portugal. No entanto, é já certo que se tem vindo a revelar fundamental para a evolução dos cuidados veterinários.
A VETERINÁRIA ATUAL conversou com uma das pioneiras da enfermagem veterinária no país, Ana Sêco, que partilhou a sua trajetória, os desafios da profissão e as mudanças que têm moldado esta profissão ao longo dos anos.
De uma entrada inesperada na profissão à descoberta de uma vocação, Ana Sêco reflete sobre como a profissão evoluiu desde que ingressou nela, a diferença na postura dos novos licenciados, as dificuldades salariais e a importância do reconhecimento dos enfermeiros veterinários dentro das equipas clínicas.
Relativamente à questão salarial da profissão, foi Nuno Renato Lima, presidente da Associação de Enfermeiros Veterinários Portugueses (AEVPORT), quem se manifestou sobre o tema, referindo ser “um dos desafios mais prementes da profissão”.
– É uma das primeiras profissionais de enfermagem veterinária em Portugal, o que a levou a ingressar na profissão?
Foi um dos melhores acasos da minha vida. Nunca tinha tido animais, nem convivido com eles até entrar na Escola Superior Agrária de Viseu. A minha paixão eram (e ainda são!) as pessoas. Queria ser enfermeira de pessoas, mas as médias não me permitiram entrar e, como o curso tinha algumas equivalências, pensei que era uma boa forma de no ano seguinte entrar na Escola Superior de Saúde.
Acontece que me apaixonei pela profissão e o amor pelos animais prevaleceu. Seria enfermeira na mesma, só mudaram os pacientes. Isto tudo esteve relacionado com as pessoas que encontrei na Agrária de Viseu: professores, colegas, funcionários e o ambiente.
  Os enfermeiros veterinários já ganharam o seu espaço no setor.
– Ainda que seja uma profissão relativamente recente, que diferença nota, ao nível de ambição e postura perante o setor, dos atuais recém-licenciados comparativamente com os da sua geração?
A nossa profissão é, de facto, muito recente. Foi há 18 anos que saiu o primeiro licenciado para um mercado que não conhecia as nossas competências, valências e como nos podíamos integrar nas equipas veterinárias.
É, por isso, que inevitavelmente os profissionais do início não têm a mesma postura que os de agora, mas isso não é algo negativo. Agora, quando os estudantes de enfermagem veterinária vão realizar os seus estágios e quando entram no mercado de trabalho, normalmente já existe um enfermeiro veterinário na equipa.
O espaço, as tarefas, as competências e as responsabilidades já lá estão, mas acho que temos muito a aprender com a nova geração. Os limites que devemos estabelecer, desde o início, entre a nossa vida profissional e pessoal e a valorização das nossas competências devem estar sempre em primeiro lugar e a minha geração, muitas vezes, não o fazia.
Tudo começou com a ideia de que, talvez em Portugal, os profissionais e, acima de tudo, os animais iriam beneficiar de técnicos especializados.
– Como vê a evolução da profissão até aos dias de hoje?
Tem sido uma viagem incrível. Tudo começou com a ideia de que, talvez em Portugal, os profissionais e, acima de tudo, os animais iriam beneficiar de técnicos especializados tal como acontecia no Reino Unido e isso está a acontecer.
Os enfermeiros veterinários já ganharam o seu espaço no setor. Estão nas clínicas, hospitais, centros de recolha oficial, universidades, laboratórios e centros de treino. Estão nos cuidados aos cães e gatos, em cavalos, em animais exóticos, em grandes animais e em suínos. Falta terem a sua voz e que essa seja transversal, seja qual for o local, para serem valorizados e poderem exercer as funções para as quais se formaram.
– Quais os desafios diários da profissão, tanto ao lidar com os animais quanto ao interagir com os tutores?
Para mim, enquanto profissional, o maior desafio é manter a curiosidade porque cada vez temos mais recursos para aumentar os nossos conhecimentos e temos mais abertura para debater construtivamente casos, situações e erros, seja na AEVPORT ou com os nossos colegas de trabalho. No entanto, precisamos de continuar a ser curiosos para perceber que nunca vamos saber tudo, curiosos para saber qual a área onde fazemos maior diferença e curiosos para tentar perceber como se sente o tutor, o que deveria saber sobre o seu animal para que as equipas veterinárias formem uma parceria pelos animais.
– Como avalia a questão salarial relativamente à profissão de enfermagem veterinária?
A questão salarial na enfermagem veterinária continua a ser um dos desafios mais prementes da profissão. De modo geral, os salários praticados em Portugal ainda não refletem devidamente o nível de responsabilidade, competências e exigência da nossa profissão. Além disso, verifica-se frequentemente que os enfermeiros veterinários são recrutados para funções polivalentes, acumulando tarefas que vão além das suas competências e formação. Esta realidade não só desvaloriza a profissão, como também pode comprometer a qualidade dos cuidados prestados, ao dispersar os profissionais por funções que não lhes competem.
Apesar dos avanços que têm sido feitos, muitos enfermeiros veterinários enfrentam dificuldades em obter uma remuneração justa e compatível com o trabalho que desempenham, especialmente tendo em conta a carga horária, o desgaste físico e emocional e a complexidade das funções que exercem. É essencial que exista uma maior consciencialização, tanto por parte das entidades empregadoras como da sociedade em geral, sobre o valor real do nosso trabalho.
O reconhecimento da enfermagem veterinária não deve ser apenas teórico, mas também refletido nas condições salariais e na definição clara das funções que competem aos enfermeiros veterinários dentro das equipas de saúde animal.
Acreditamos que um dos caminhos para a valorização salarial passa por uma maior regulamentação da profissão e pela luta contra esta tendência de funções polivalentes, garantindo que os enfermeiros veterinários sejam contratados para desempenhar o papel para o qual foram formados. Esta é uma das razões pelas quais a AEVPORT continua a trabalhar para dar visibilidade à profissão e a sensibilizar para esta questão fundamental.
De um modo geral, os salários praticados em Portugal ainda não refletem devidamente o nível de responsabilidade, competências e exigência da nossa profissão.
– De que forma o contínuo crescimento dos CAMVs impacta na procura por enfermeiros veterinários?
Vamos colocar as coisas desta forma: a evolução dos CAMV deve-se às equipas multidisciplinares que trabalham juntas para prestar cuidados de excelência a quem os procura. Os enfermeiros veterinários são peça-chave no crescimento dos CAMV, pois é inevitável que precisem de profissionais mais qualificados para desenvolverem novas aéreas e oferecerem serviços diferenciados. As novas gerações de tutores de animais de companhia estão mais conscientes do que envolve ter um animal e recorrem mais frequentemente aos CAMV. Desta forma, também é necessário mais profissionais para dar resposta, mas estes têm de ser valorizados, não exclusivamente ao nível salarial, porque deste modo vamos continuar a assistir a licenciados portugueses a emigrar e a procurar melhores condições para exercer esta profissão maravilhosa.
– A sua formação passa também pelo marketing, como aplica esta área na comunicação com os tutores de animais de companhia?
O interesse pelo marketing surgiu porque, no meu local de trabalho, existiu abertura para desenvolver comunicações e eventos para os tutores. Após o meu mestrado, senti que nos desresponsabilizamos enquanto CAMV pela educação dos tutores, o que considero errado.
O local mais indicado e mais seguro é onde a pessoa confia a saúde do seu animal, por isso, temos de encontrar profissionais e estratégias para educar os nossos clientes para que eles possam dar a melhor vida possível aos seus animais. A educação dos tutores faz parte da medicina preventiva que praticamos nos nossos CAMV e, no meu caso, aplico-a a organizar formações e eventos para tutores e sou também responsável pelas redes sociais da clínica onde trabalho.
– Na sua ótica, qual o papel da comunicação para o sucesso de uma equipa veterinária?
A comunicação é a base de tudo. Contudo, é o “parente pobre” da gestão porque quando ela é eficiente ninguém repara. Só se percebe quando os problemas surgem, não apenas ao nível relacional, mas no desempenho das tarefas dos profissionais. O sucesso de uma equipa veterinária vai muito além dos números, seja número de vacinas, número de cirurgias ou número de ecografias realizadas.
O sucesso de uma equipa, na minha ótica, é o número de animais ajudados, o número de famílias apoiadas e educadas e, acima de tudo, o número de profissionais felizes que todos os dias dão a cara pelo CAMV onde trabalham.
O sucesso de uma equipa, na minha ótica, é o número de animais ajudados, o número de famílias apoiadas e educadas e, acima de tudo, o número de profissionais felizes que todos os dias dão a cara pelo CAMV onde trabalham.
– O que diria a alguém que está a considerar seguir a carreira de enfermagem veterinária?
Fazem-me essa questão muitas vezes, essencialmente alunos do secundário que procuram profissionais de enfermagem veterinária para perceberem qual é a realidade.
Inevitavelmente, muitos deles saem desiludidos pela falta de valorização dos enfermeiros veterinários, quer pela falta de conhecimento da sociedade, quer pelos salários baixos.
Muitos destes jovens têm contacto com a profissão porque têm um animal que visita frequentemente um CAMV ou porque fizeram algum tipo de voluntariado e sentiram-se inspirados pelos profissionais com quem se cruzaram.
Apesar de tudo, é importante passar a mensagem de que não somos ‘mini’ médicos veterinários, nem queremos ser, mas somos uma profissão recente, que está a cimentar o seu lugar (quer ao nível das competências, responsabilidades e autonomia). Quem está a considerar seguir esta profissão tem de estar ciente do desgaste físico e mental associado, mas é a profissão mais incrível do mundo.