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Médicos Veterinários

“A área que dá mais trabalho, pela incapacidade de resolução, é a gestão dos animais errantes”

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Nos últimos anos, temos assistido a fenómenos naturais, como cheias, sismos e incêndios, que exigem respostas rápidas e eficientes por parte das entidades responsáveis. Estas situações expõem fragilidades operacionais e, até, a falta de planos de contingência bem estruturados para garantir respostas eficientes e coordenadas.

Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, Ricardo Lobo, médico veterinário municipal e presidente da Associação Nacional de Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM), discute o papel essencial dos médicos veterinários municipais na resposta a catástrofes naturais, refletindo também sobre os principais desafios da profissão.

O dia a dia de um médico veterinário municipal envolve diversas atividades relacionadas com a saúde pública, bem-estar animal e segurança alimentar. Como descreve o seu dia a dia como médico veterinário municipal?

Entre as principais responsabilidades do médico veterinário municipal estão a inspeção de produtos de origem animal no retalho, assim como a realização de inspeções sanitárias em matadouros, neste caso, no Matadouro Regional de Monção, assegurando que os processos atendam às normas de higiene e segurança alimentar. Além disso, o médico veterinário municipal lida com queixas dos municípios relacionadas à insalubridade gerada por animais de companhia ou por espécies pecuárias, assim como questões de bem-estar animal – o maior número de queixas de bem-estar animal costuma estar relacionado com os equinos.

O trabalho também inclui a atuação no Centro de Recolha Oficial Intermunicipal do Alto Minho, onde, como diretor, coordeno a gestão do equipamento em conjunto com outros dez municípios. Muitas vezes, as diligências são realizadas em conjunto com as forças policiais, garantindo a minha segurança nas intervenções. Este conjunto de atividades compõe a minha rotina como médico veterinário municipal.

Mencionou que o bem-estar dos equinos é uma área particularmente sensível. Poderia detalhar os principais desafios relacionados com essas queixas e como elas se diferenciam de outras espécies?

As queixas relacionadas ao bem-estar animal concentram-se na sua maioria em casos de maus-tratos a animais de companhia, especialmente cães. Esses casos envolvem frequentemente situações de cães acorrentados ou mantidos em condições que não respeitam os padrões mínimos de bem-estar animal.

Já no que se refere aos animais de produção ou espécies pecuárias, a maioria das queixas está relacionada com os equinos. Muitos desses casos envolvem negligência, como cavalos deixados sozinhos, expostos às intempéries ou amarrados com cordas em condições inadequadas. Os equinos, efetivamente, caem num limbo difícil de classificar, sendo frequentemente mantidos por pessoas que os utilizam para pequenos negócios, vendas ou mesmo por capricho. No entanto, essas pessoas muitas vezes, não possuem condições para cuidar desses animais adequadamente, resultando em denúncias que abrangem casos de fome, abandono e até acidentes em vias públicas. Alguns dos exemplos incluem cavalos soltos em autoestradas, colocando em risco o trânsito e a segurança das pessoas. Já fui acionado às quatro da manhã para eutanasiar um cavalo que tinha as pernas fraturadas e que ainda se conseguia movimentar, no meio do trânsito, na autoestrada. Nessa ocasião, contei com o apoio de uma escolta policial, cuja ajuda foi indispensável para conter o cavalo, que era selvagem. Com o trânsito a ser controlado pela brigada de trânsito, um dos agentes utilizou uma corda para ajudar a imobilizar o animal, permitindo que eu aplicasse o cateter e realizasse o procedimento da eutanásia.

Por outro lado, as espécies como bovinos, ovinos e caprinos estão geralmente associadas a explorações produtivas e os produtores estão cada vez mais conscientes de que o bem-estar animal está diretamente ligado ao rendimento da exploração, o que reduz significativamente o número de denúncias nesses setores.

“A ANVETEM e os médicos veterinários municipais têm uma visão clara sobre essa situação e sabem que políticas deveriam ser impostas sem implicar grandes gastos financeiros (…), mas, efetivamente, teremos de esperar que os próximos governos e a próxima tutela tenham a clarividência e o discernimento de começar a aplicar essas políticas.”

Nos últimos anos, temos assistido a fenómenos naturais e a alguns eventos como cheias, sismos e incêndios, que exigem respostas rápidas e eficientes por parte das entidades com o pelouro dos animais. Qual é o papel do médico veterinário municipal na gestão dessas situações de catástrofe e que entidades estão envolvidas nessa assistência? O que tem sido feito para aprimorar a resposta, especialmente após os incêndios de Santo Tirso em 2017?

Em contexto de catástrofe natural, seja ela de que natureza for, a gestão da resposta é coordenada pela Proteção Civil, que atua a nível municipal e nacional. Essa entidade é responsável pela elaboração e execução de planos de contingência, como os Planos Municipais de Proteção Civil, que têm como objetivo minimizar riscos, maximizar a segurança de pessoas, bens e, mais recentemente, incluir a proteção dos animais – uma preocupação que ganhou relevância especialmente após os incêndios de 2017, que foi quando acordámos para essa realidade e para a necessidade efetiva de acautelar as situações relacionadas com os animais.

O médico veterinário municipal desempenha um papel fundamental nesse contexto, dado o seu conhecimento técnico sobre os animais, seja de companhia, espécies pecuárias ou outras. Assim, são também autoridades empossadas por esses poderes, embora seja um poder de autoridade com competências diferentes no âmbito da saúde animal e da segurança dos alimentos. Desta forma, como agente de autoridade, o médico veterinário municipal deve participar ativamente em todo o processo, que começa na elaboração do Plano Municipal de Proteção Civil, identificando as áreas críticas, como explorações pecuárias em zonas de risco, Centros de Recolha Oficial ou os abrigos com grande concentração de animais. É essencial que esses planos definam os procedimentos a adotar em caso de catástrofe, os níveis de alerta, para que se chegue a uma decisão de evacuação. E, a partir daí, determinar como será feita a evacuação, que meios devem ser utilizados, e para onde os animais serão transportados.

Durante a operacionalização desses planos o comando das ações cabe à Proteção Civil, mas a presença do médico veterinário municipal é indispensável para auxiliar na gestão e execução de ações específicas relacionadas aos animais. Tudo aquilo que não se deseja, e que tem vindo a acontecer em situações onde não estão acautelados estes Planos Municipais de Proteção Civil, que envolvem animais, são atuações haddock, quase aleatórias e sem regras, de grupos de pessoas e voluntários, com a melhor das intenções, mas que vão para o teatro de operações criando riscos para outras pessoas. No fundo, estas situações anárquicas acabam por atrapalhar o trabalho de pessoas que deveriam estar focadas nas suas ações.

Todos nós temos guardadas na nossa memória as imagens dos incêndios de Santo Tirso, naquele domingo à tarde, em que várias pessoas invadiram o espaço, agarrarem nos cães – volto a repetir, com a melhor das intenções –, atropelando-se umas às outras. Houve cães dos quais se perdeu o rasto… E isso é completamente indesejável. Antes das pessoas intervirem de forma quase emocional, as autoridades devem garantir o controlo absoluto da situação e devem ser, elas próprias, capazes de ter tudo planeado para que no momento certo possa ser executado sem grandes problemas. Neste sentido, estes planos não devem estar sempre à espera de que ocorra um acidente ou uma catástrofe para serem postos em prática, devem ser testados com simulacros. As autoridades devem estar sempre em alerta permanente e devem estar treinadas para que cada um saiba a sua função num momento decisivo. No entanto, reconheço que, na maioria dos casos, estas questões ainda não estão acauteladas pelos Planos Municipais de Proteção Civil, sendo depois deixada ao livre-arbítrio de quem se voluntaria para poder ajudar, mas essas não são de todo as condições desejáveis para o efeito. Com um plano de contingência que seja democratizado e formalizado, se acontecer alguma desgraça, será possível pô-lo em prática no teatro de operações.

“As queixas relacionadas ao bem-estar animal concentram-se na sua maioria em casos de maus-tratos a animais de companhia, especialmente cães. Esses casos envolvem frequentemente situações de cães acorrentados ou mantidos em condições que não respeitam os padrões mínimos de bem-estar animal.”

Desejável é que cada município tenha o seu próprio plano de proteção municipal…

Sim, porque essas questões são muito específicas, têm a ver com as características de cada geografia e com a quantidade de animais e instalações que existem. A partir daí, esse plano tem de acautelar tudo o que deve ser feito numa fase de contenção. Depois, segue-se a fase de evacuação e, mais tarde, de encaminhamento. Tudo deve ser planeado ao pormenor, os meios de transporte a recorrer, os sítios onde os animais vão ficar alojados temporariamente e numa fase posterior. Em caso de catástrofes de grandes dimensões, será sempre impossível recolher e pôr a salvo todos os animais mortos, como aconteceu nos incêndios de 2017, podendo representar um risco de saúde pública.

Tendo em conta que é Presidente da Associação Nacional de Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM), qual É atualmente a questão mais problemática que assola esta área específica da medicina veterinária?

A área que dá mais trabalho, que é mais difícil e que implica mais frustração, pela incapacidade de resolução, é efetivamente a questão dos animais errantes, porque as políticas colocadas em prática nos últimos anos não têm resolvido o problema. Não apresentam ferramentas concretas para que os médicos veterinários municipais também possam resolver o problema. E, muitas das vezes, eles próprios veem-se a braços com diversos dilemas, que incluem questões de bem-estar animal… Deixar animais na rua por recolher, tentar defender a segurança e a saúde pública e, por outro lado, também cumprir com as normas de bem-estar animal nos próprios Centros de Recolha Oficiais. Com as políticas que estão neste momento em vigor é difícil perceber quando é que o problema se poderá ser resolvido. A ANVETEM e os médicos veterinários municipais têm uma visão clara sobre essa situação e sabem que políticas deveriam ser impostas sem implicar grandes gastos financeiros, como aqueles que têm vindo a ser a ser aplicados, mas, efetivamente, teremos de esperar que os próximos governos e a próxima tutela tenham efetivamente a clarividência e o discernimento de começar a aplicar essas essas políticas.

“Já fui acionado às quatro da manhã para eutanasiar um cavalo que tinha as pernas fraturadas e que ainda se conseguia movimentar, no meio do trânsito, na autoestrada. Nessa ocasião, contei com o apoio de uma escolta policial, cuja ajuda foi indispensável para conter o cavalo, que era selvagem.”

Mas já tem havido algumas mudanças ou, pelo menos, vontade que aconteçam. Nos planos dos governos, isto é ainda muito residual?

Não vemos grandes mudanças, vemos sim uma atitude de preocupação. Já houve muitos debates, mas os debates não trazem soluções efetivas. Inclusivamente, mais do que debate, há muito dinheiro a ser aplicado, que não traz soluções efetivas e o problema tem de ser resolvido pela via da responsabilização dos detentores e pela regulação do acesso à detenção dos animais de companhia. Só quando tivermos isso controlado é que, efetivamente, o problema será absolutamente resolvido.

A Provedoria do Animal nacional tem desenvolvido diversas ações voltadas para os animais errantes. Que sinergia existe entre o trabalho da Provedoria e a atuação do médico veterinário municipal? Como de desenvolve essa relação institucional?

Temos uma boa relação institucional com a Provedoria do Animal, vamos falando, partilhamos informação e também alguma visão daquilo que entendemos que deve ser o rumo das coisas. Não estaremos alinhados em tudo, obviamente, mas têm sempre a sensibilidade de contar connosco nos eventos que organizam.

*Entrevista publicada na edição 188, de dezembro, da VETERINÁRIA ATUAL

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