As práticas cat friendly não são incompatíveis com as medidas especiais que é necessário implementar perante um felino diagnosticado com uma doença infeciosa. Quem o diz é Inês Cunha Machado que assegura: ter gatos tranquilos e sem stress é fundamental para o bom outcome terapêutico.
Stress e felinos são uma associação com resultados bem conhecidos pela comunidade médico-veterinária. “Sabemos não só o efeito que tem na imunidade inata como na adquirida e conhecemos a capacidade do stress para reduzir a atividade das células imunoprotetoras. Além disso, também sabemos que a probabilidade de, sob condições stressantes, uma infeção progredir para doença é bastante maior, como acontece no FIV e nos retrovírus em geral”, admitiu Inês Cunha Machado no VIII Congresso de Medicina Felina, organizado pela Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC) a 12 e 13 de outubro em Lisboa e que teve como mote central a “Abordagem Diagnóstica e Terapêutica às Principais Doenças Infeciosas Felinas”.
A médica veterinária, que se dedica às doenças infeciosas na medicina felina no Hospital do Gato, participou no encontro com uma palestra sobre o tema “Doenças Infeciosas e práticas cat friendly, inimigos ou aliados?”
Sendo a ida ao médico veterinário, e a permanência nas clínicas em caso de internamento, um momento que envolve muito stress e uma grande dose ansiedade nos felinos, não é raro que cause também a reativação de infeções latentes, como é o caso da FIV ou dos herpesvírus, e até complique a vida aos médicos veterinários que tantas vezes de deparam com “o clássico leucograma de stress ou com a hiperglicemia também causada por stress” que lhes dificulta o diagnóstico.
Mas, “quando se pensa em práticas cat friendly, com gatos a pular por todo o lado, a saírem das transportadoras à sua velocidade e a serem subornados com petiscos isso não é totalmente contraditório com o manter a zona livre de perigos infeciosos”, garantiu a médica veterinária, pois ao trabalhar das duas formas – respeitando a essência da espécie e prevenindo as infeções – consegue-se aumentar a segurança dos procedimentos, reduzir o tempo de manipulação e aumentar o grau de fiabilidade dos atos médicos, já que o profissional estará perante um paciente mais colaborante. “Esta visão diminui o risco de lesões e, consequentemente, de zoonoses e se a prática é mais rápida e implica menos manipulação e menos contenção, menor é o risco de o animal espalhar secreções que contaminam o ambiente e os pijamas”, explicou Inês Cunha Machado.
O que causa stress em gato? “Quase tudo”
Fazer de um Centro de Atendimento Médico-Veterinário (CAMV) um local cat friendly tem princípios bem conhecidos delineados a partir da resposta à pergunta: o que causa stress a um gato?
“Quase tudo”, respondeu perentoriamente Inês Cunha Machado, sobretudo se pensarmos num ambiente estranho, como é um CAMV. “Damos a conhecer os cinco pilares felinos para os tutores terem e respeitarem nas suas casas, mas, depois, não nos lembramos que, quando visitam as nossas clínicas ou ficam internados nos nossos hospitais, os gatos precisam também de ter alguns destes recursos”, explicou a oradora, nomeando os locais seguros em que os felinos se possam esconder, os recursos múltiplos e variados para manter viva a mente felina, dar oportunidade de brincar e exibir os comportamentos predatórios, ter interações positivas com humanos e ter um ambiente que respeite o olfato apurado da espécie.
“Quando se pensa em práticas cat friendly, com gatos a pular por todo o lado, a saírem das transportadoras à sua velocidade e a serem subornados com petiscos isso não é totalmente contraditório com o manter a zona livre de perigos infeciosos.” – Inês Cunha Machado
A questão é como manter estes pilares da medicina felina em casos de doentes afetados doenças infeciosas pois “sendo o intuito de uma instituição de saúde manter os pacientes saudáveis, também sabemos que é nas instituições de saúde que acolhemos os pacientes doentes, potencialmente infetados e muitas vezes sem que os tutores nos deem ferramentas para suspeitar de que se trata de um doente infecioso e sem que a equipa tenha a oportunidade de o identificar antes de contaminar as instalações”, reconheceu a médica veterinária.
Nesse sentido, é necessário dar ferramentas à equipa – desde a receção, aos auxiliares, enfermeiros e também médicos veterinários – para a identificação precoce das doenças infeciosas que podem colocar em causa a saúde dos profissionais e dos restantes clientes.
Em primeiro lugar, mencionou Inês Cunha Machado, há que “fazer as perguntas certas” logo no momento da triagem. Saber se há outros gatos em casa, como estão de saúde, se é um animal que tem acesso ao exterior, qual o estado vacinal e a idade do gato são informações fundamentais para despistar possíveis patologias.
Quando são gatos mais jovens, entre os possíveis diagnósticos que passam na cabeça do médico veterinário estão a panleucopenia e o FeLV (Feline leukemia virus), se foram gatos mais idosos pensam mais numa infeção multirresistente ou em FIV (vírus da imunodeficiência felina). Se estiverem perante um gato com acesso ao exterior, o primeiro pensamento poderá será uma infeção causada por retrovírus, se for um gato que vive em abrigos ou numa casa multigato a primeira inclinação poderá ser para as doenças respiratórias e se o tutor identificar à partida um momento com uma grande carga de stress – como uma viagem ou a estadia num hotel para animais – nesse caso não é de descartar a possibilidade de peritonite infeciosa felina (PIF).
Conhecer para agir
No que diz respeito às doenças infeciosas, como na grande maioria das patologias, o importante é prevenir – neste caso, quer a contaminação de profissionais, quer de outros animais – já que é sempre mais difícil lidar com as consequências de uma coinfecção ou de um surto numa clínica.
E para fazer uma prevenção eficaz entre os restantes animais que frequentam a clínica é fundamental saber que há agentes que para infetar um paciente necessitam de contacto direto com fluídos, outros em que a fomite nos pijamas ou uma box mal desinfetada pode ser suficiente para ocorrer a transmissão e neste campo da transmissibilidade Inês Cunha Machado elegeu como “alertas vermelhos” a panleucopenia, as microbactérias, o herpesvírus, a chlamydophila felis como sendo os agentes que causam mais preocupação.
Em termos de internamento, o que a oradora considera importante é ter orientações que sejam claras para todos os elementos da equipa e deem segurança do que se está a fazer perante um caso infecioso. “Ter regras, procedimentos operacionais padrão, que sejam rotina, vai ajudar a equipa a ter menos ansiedade ao receber um caso destes”, admitiu. E se a equipa está menos ansiosa também vai conseguir passar esse estado menos stressado ao gato, o que terá implicações positivas no outcome do tratamento.
É certo que nem todos os CAMV conseguem providenciar os cenários ideais para acolher caos infeciosos: ter instalações específicas para os doentes com doenças infeciosas, ter entradas separadas, câmaras de videovigilância, sinalética, pressão negativa. E como não é possível a todas as unidades reproduzir todas estas condições, para Inês Cunha Machado o mais importante “é ter o funcional em vez do ideal”.
Começar com medidas ponderadas como “usar o equipamento que é preciso, no momento que é preciso e descartá-lo quando assim tem de ser” no caso das máscaras, fatos e luvas, apostar em ter alguns equipamentos exclusivos para salas de isolamento – por exemplo estetoscópio, bomba infusora, taça de comida, caixotes, capas de termómetros – e o que for passível de ser reutilizado deve ser bem desinfetado e com segurança.
Na utilização dos produtos desinfetantes é imperativo utilizá-los de acordo com as instruções do fabricante para assegurar uma correta desinfeção.
Uma sugestão de Inês Cunha Machado é a aposta na monitorização à distância do animal que está internado no isolamento. “Não é preciso investir num sistema de videovigilância”, assegurou, basta ter uma simples câmara de vídeo direcionada para a box onde está o doente para que o profissional possa ver o animal sem o submeter a visitas e manipulações desnecessárias.
Outra aposta deve ser a construção de “rotinas que vão contribuir para ter um paciente mais colaborante”, lembrou. Isto passa por ter o material necessário à disposição antes de pegar no animal, antecipar e organizar o trabalho, definir horários para os tratamentos e manipulações necessárias. O ideal seria ter profissionais a trabalhar em exclusivo com estes animais, mas não sendo possível, os animais em isolamento devem ser os últimos a serem vistos nas rondas.
Inês Cunha Machado também observou o lado positivo de ter um gato isolado no internamento infecioso. “Tem menos estímulos auditivos, menos animais ao pé dele, o que vai ajudar a controlar as transmissões por aerossóis e, ao mesmo tempo, vai ajudar-nos a ter um paciente felino com menos estímulos de stress, mais tranquilo o que possibilita uma manipulação mais rápida, mais planeada” e com menos riscos para o animal e para o profissional.
Mas, mesmo nos internamentos de doenças infeciosas, não devem ser descurados os princípios cat friendly e uma box deve estar sempre equipada com uma caixa de cartão que possa servir de esconderijo, e possa ser descartada posteriormente, com brinquedos simples como o resto do rolo adesivo que também pode ser deitado fora. E mesmo que o gato esteja algaliado deve ter uma caixa de areia à disposição e se estiver com uma sonda deve ter igualmente acesso a uma taça de alimento, tudo em materiais que posam ser desinfetados. E o conforto do animal deve ser assegurado com resguardos descartáveis ou mantas trazidas de casa que possam ser deitadas fora.
“Percam tempo a manter o paciente o mais confortável possível porque o tender, love and care faz maravilhas pela sobrevivência”, concluiu a médica veterinária.