O Hospital Veterinário da Universidade de Évora faz este ano 25 anos. Pensado para ser o local de aprendizagem clínica dos alunos do Departamento de Medicina Veterinária, onde estes têm o primeiro contacto com a realidade da profissão, tem aquilo que se pode classificar de atividade mista – recebe animais de companhia, de produção e equinos – mas está dedicado, sobretudo, à medicina veterinária de grandes animais, tirando partido da localização numa região de tradição pecuária e equina.
Quantas histórias e quantas vidas cabem em 466 anos? Incontáveis, certamente. Essa é a idade da Universidade de Évora (UE), que abriu as portas da sociedade alentejana ao ensino universitário no já longínquo ano de 1559. É certo que não é desde essa altura que a medicina veterinária faz parte do portfólio educativo da instituição, mas este ano de 2025 marca uma data redonda na vida do Departamento de Medicina Veterinária (DMV): os 25 anos do Hospital Veterinário da Universidade de Évora (HVUE).
E nesse quarto de século também já se contam muitas histórias, como a de Teresa Oliveira, do Porto, com passagem pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), que acabou por vir parar ao Alentejo, primeiro para trabalhar no hospital, quando este ainda funcionava apenas como clínica, depois para passar também a integrar o corpo docente do DMV, onde hoje é responsável pela cadeira de Medicina Interna de Animais de Companhia. Quando chegou, conta à VETERINÁRIA ATUAL, Teresa Oliveira deparou-se com uma realidade bem diferente da que conhecia. “É uma coisa engraçada porque, quando visitei o hospital pela primeira vez, na altura ainda era clínica, vi que as jaulas [do internamento] eram o dobro ou o triplo das que estava habituada a ver no Porto ou na UTAD, onde tinha estado a trabalhar. Mas, se pensarmos no Rafeiro do Alentejo, percebe-se o porquê, já que um cão de 60 ou 70 quilos – um pouco acima do peso, é certo – ocuparia todo o espaço de uma jaula normal”, lembra, com graça, a atual diretora clínica do HVUE.
“Temos um internamento de espécies pecuárias, com quatro boxes, uma sala de consulta externa só para espécies pecuárias e uma sala de cirurgia também só para espécies pecuárias. Realmente, num hospital que tem uma atividade mista, faz toda a diferença.” – Teresa Oliveira, Diretora Clínica do HVUE
O tamanho das jaulas do internamento do HVUE pode até parecer um pormenor, mas, no fundo, mostra como o ensino, a prática clínica e toda a realidade da medicina veterinária da instituição foi pensada para ser diferente das restantes faculdades de medicina veterinária do País, ou não estivesse a UE no coração do Alentejo, uma terra com história na produção pecuária, com tradição na criação de cavalos e, sobretudo, com o espaço e a amplitude de horizonte característicos desta região do País.
Aproveitando este enquadramento, a Universidade delineou, em meados dos anos de 1990, um curso de medicina veterinária pensado para dar resposta a carreiras que na medicina veterinária não costumam estar no topo das preferências dos profissionais, ou seja, a veterinária de animais de produção e a veterinária de equinos. Afinal, lembra Catarina Lavrador, diretora hospitalar do HVUE, “os animais de companhia impõem-se muito. É um mercado que quase oprime os outros. E, além disso, Portugal não tem assim muita produção pecuária”, daí ser uma área que não costume encabeçar as preferências de quem quer enveredar pela profissão.
Os restantes cursos de medicina veterinária do País asseguram igualmente a formação em todas as espécies animais, incluindo os de grande porte. Contudo, o DMV quis, precisamente, tirar partido do facto de estar rodeado da singular planície alentejana, rodeado de explorações de gado que criam o ambiente rural no qual os alunos vão imergir, num ensino que, não tendo nascido única e exclusivamente para a medicina veterinária de animais de grande porte, tem um forte pendor para esse setor da atividade.
É no Polo da Mitra da UE, localizado em Valverde, uma povoação a cerca de 12 quilómetros da cidade de Évora, numa zona bem rural, que funciona o DMV e o hospital, que iniciou atividade primeiramente como clínica, para dar resposta às necessidades de formação prática do curso, e depois recebeu o selo de hospital veterinário no seguimento das atualizações legislativas sobre os centros de atendimento médico veterinário (CAMV). E, lembra a diretora hospitalar, desde o início que a clínica “sempre teve uma vertente mista de atividade: grandes animais, equinos e animais de companhia”.
Consultas e internamento para cães, gatos, ovelhas, porcos e vacas
Essa ideia de “apostar muito forte na área das espécies pecuárias e equinos (ver caixa)”, como diz Catarina Lavrador, aquando da criação do curso de medicina veterinária em Évora, acabou por se refletir na forma como o hospital veterinário foi pensado para receber as aulas práticas.
As jaulas de internamento com dimensões mais adaptadas às espécies autóctones de animais de companhia, já mencionadas por Teresa Oliveira, são um dos pormenores distintivos numa estrutura arquitetónica que tem, mais ou menos, um desenho idêntico ao de outros hospitais veterinários, ou seja, tem três consultórios, internamentos diferenciados para doentes com e sem patologia infeciosa, sala de cirurgia, sala de ecografia, sala de raio-x, laboratórios (de microbiologia, parasitologia, e anatomia patológica), farmácia e balneários.
Mas, a principal diferença nas instalações é que o HVUE possui também um espaço dedicado apenas às espécies de grande porte. “Temos, um internamento de espécies pecuárias, com quatro boxes, uma sala de consulta externa só para espécies pecuárias e uma sala de cirurgia também só para espécies pecuárias. Realmente, num hospital que tem uma atividade mista, faz a toda a diferença” ter estas instalações, reconhece Teresa Oliveira.
Nas rédeas do funcionamento do hospital está uma direção bicéfala – com Catarina Lavrador na direção hospitalar e Teresa Oliveira como diretora clínica – e uma equipa que inclui 10 médicos veterinários, cinco enfermeiros, dois assistentes técnicos e mais duas pessoas que se ocupam da receção. É esta equipa que proporciona a formação prática dos alunos e a clínica na comunidade eborense que inclui para os animais de companhia consultas de imunoalergologia, oftalmologia, oncologia, traumatologia e dor, consulta de dor, dermatologia e medicina interna, obviamente. Catarina Lavrador deseja em breve juntar a estas especialidades a área da reabilitação, que tem crescido bastante na medicina veterinária nos últimos anos. “Estamos a querer candidatarmo-nos à aquisição de algum equipamento para a área da reabilitação e da fisioterapia, até porque temos uma colega que tem uma particular paixão por esta área e, portanto, queríamos desenvolvê-la”, explica a diretora hospitalar, segundada pela diretora clínica que, afiança: “A parte da reabilitação faz, claramente, parte dos nossos planos e também gostávamos de apostar numa ressonância magnética para servir aqui a zona do Alentejo, porque neste momento estamos um bocado desfalcados nessa área”.
Uma vertente da medicina veterinária que é muito residual no HVUE é a que diz respeito aos animais exóticos. “Temos consultas, mas só por marcação com um colega que trabalha aqui no Alentejo e tem uma parceria connosco. Mas é mesmo muito residual”, admite Teresa Oliveira.
“Por sermos um hospital universitário público, devemos desempenhar um papel de apoio à comunidade e, então, vamos um bocadinho mais além das esterilizações. Estes programas podem também incluir alguns tratamentos mais avançados e cirurgias, nomeadamente para famílias mais carenciadas.” Catarina Lavrador, Diretora Hospitalar do HVUE
Aprender com as mãos na massa, ou melhor, na ordenha
Se no hospital os alunos tomam contacto com a vida do consultório e do internamento, é no terreno onde, verdadeiramente, vão calçar as botas e pôr a mão na massa. Como volta a lembrar a diretora hospitalar, as outras faculdades de medicina veterinária do País proporcionam igualmente a formação em animais de produção, “por exemplo, em Lisboa, na Faculdade de Medicina Veterinária, têm alguns animais – vacas, ovelhas, cabras – mas não é no campo, não têm uma vacaria, não têm uma sala de ordenha e nós temos isso” de sobra na vizinhança, garante. Nas redondezas do Polo da Mitra situam-se as explorações onde os alunos vão tomar contacto com a realidade que foi, eventualmente, até o motivo da escolha daquele curso. Ovinos, bovinos, suínos, explorações leiteiras, explorações de carne recebem a visita de alunos e formadores para um ensino com um teor muito prático sobre a vida do médico veterinário de animais de grande porte.
Questionadas sobre se esta proximidade com o mundo rural é benéfica para a formação e para o funcionamento do hospital, ambas as médicas veterinárias anuem positivamente. “Acho que sim, que faz toda a diferença ir a uma sala de ordenha e explicar como é feita a limpeza do ubre, por exemplo. Parece-me que todos esses pequenos detalhes fazem a diferença, porque é ali [no campo] o seu próprio local de estudo”, frisa Catarina Lavrador.
Teresa Oliveira corrobora da ideia e admite que “o contacto próximo com essas realidades permite-lhes observar essas atividades. Os alunos conseguem ir com os produtores, ver a ordenha, ver as ovelhas, fazerem os cascos, por exemplo. São tudo atividades que conseguem acompanhar logo desde o início do curso de medicina veterinária”.
Esta ligação estreita entre o DMV, o HVUE e o campo possibilita não só o ensino do maneio animal, mas também permite aos alunos aprender sobre a especificidade da relação entre médico veterinário e produtor pecuário. Afinal, diz a diretora clínica “os produtores são donos diferentes” e é necessário desenvolver pela observação o “bom-senso, a educação e a sensibilidade para saber quais são os objetivos do produtor e para comunicar quando alguma coisa está errada numa exploração e é preciso sacrificar um animal, às vezes um efetivo inteiro. A pessoa vai ter prejuízos económicos enormes e não vai ficar satisfeita, mas isso não é por desprezar a vida do animal, porque os produtores, tal como os veterinários, gostam dos seus animais, só que a perspetiva é diferente da do dono de um cão. Ainda assim, todos queremos o bem-estar do animal, porque só um animal saudável poderá ser rentável para o produtor”.
Vontade de trabalhar mais para a comunidade
Se estar no meio do campo, rodeado de herdades e de produtores pecuários, facilita a formação em grandes animais, estar distanciado do centro da cidade dificulta o acesso dos tutores de animais de companhia ao HVUE. No fundo, no Polo da Mitra vive-se o cenário inverso do que se passa nas cidades do litoral ou em contextos mais urbanos. “Do ponto de vista dos animais de companhia, estarmos em Valverde tem as suas desvantagens, porque estamos fora do centro de Évora e, cada vez mais, os animais de companhia estão em centros urbanos”, explica a diretora hospitalar. É difícil um detentor de um cão ou gato ir a pé até ao hospital para vacinar o animal ou fazer uma consulta de rotina. Tem de se deslocar em carro próprio até lá, já que os meios de transporte públicos também escasseiam.
Daí que esteja a ser pensada uma alternativa para aproximar o HVUE à comunidade e alargar ainda mais o número de animais a que os alunos têm acesso. “Um dos nossos projetos para o futuro – como forma de aumentar a visibilidade do hospital – é ter um pequeno consultório na cidade a funcionar um bocadinho como uma unidade de cuidados primários para fazer a triagem, ver o que requer internamento na Mitra e fazer na cidade aquilo que são as atividades inerentes a um consultório ou a uma clínica”, explica Catarina Lavrador, que gostava ainda de ter a funcionar uma ambulância veterinária que pudesse fazer a ligação entre esse consultório na cidade e o hospital em Valverde.
Esta estrutura também pode ajudar a fomentar ainda mais as parcerias que já existem com as autarquias circundantes. O HVUE tem feito vários protocolos com câmaras municipais – sendo a de Évora “o nosso maior parceiro, temos uma relação ótima e que flui de forma muito eficaz”, admite a diretora hospitalar – para campanhas de esterilização e não só. “Por sermos um hospital universitário público, devemos desempenhar um papel de apoio à comunidade e, então, vamos um bocadinho mais além das esterilizações. Estes programas podem também incluir alguns tratamentos mais avançados e cirurgias, nomeadamente para famílias mais carenciadas”, explica.
Menos bem tem corrido a relação com as entidades locais de saúde humana. “Temos tido algumas barreiras e várias dificuldades de diálogo com o delegado de saúde pública e queríamos estimular um bocadinho este diálogo, até para fomentar aquilo de que se fala tanto agora, a One Health”, admite a responsável, lembrando os casos de duas zoonoses de notificação obrigatória na medicina humana que a equipa do DMV identificou e teve dificuldade em comunicar com as autoridades locais. “Temos esperança que seja uma relação que venha a crescer, nós esforçamos. Até porque é uma área importante e nós, os médicos veterinários, funcionamos um bocadinho como unidade de sentinela [das doenças zoonóticas]”, acrescentou.
Todavia, a ligação do HVUE com a sociedade vai para além das fronteiras regionais. Os laboratórios do hospital integram a rede nacional do Programa Antídoto, que investiga os casos de animais selvagens encontrados em meio natural, mortos ou feridos, com suspeita de uso de substâncias tóxica ou de maus-tratos. “Já recebemos de tudo, aves de rapina, mamíferos aquáticos, javalis, veados”, relata Catarina Lavrador, alguns casos em que se fez a necrópsia forense para determinar a causa de morte e depois foram incinerados no forno que também está nas instalações do hospital.
Ter à disposição a componente laboratorial e estar integrado numa estrutura universitária organizada de forma departamental também fomenta a colaboração entre os diversos cursos da UE para fazer nascer projetos de investigação com impacto nacional envolvendo os profissionais do DMV e do HVUE, como o que monitorizou a população de ginetas, com captura de exemplares para identificação e avaliação do estado geral.
A área da medicina da reprodução também tem colhido o interesse de investigadores da UE. Já está em campo uma equipa de colheita de embriões e aguarda-se o aval da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária para avançar um centro de colheita de sémen que irão em conjunto desempenhar um papel importante em programas de conservação e melhoramento das raças autóctones, nos quais os alunos também desempenharão um papel relevante. Na opinião de Catarina Lavrador, esta será “uma vertente também super-importante, porque ainda há muita gente que não sabe a quantidade tremenda de raças autóctones que temos, a sua importância, que ainda vai aumentar quando as alterações climáticas se manifestarem ainda de forma mais aguda do que já se manifestam”.
Um mini CAMV dedicado à medicina veterinária equina
A atividade do HVUE e a formação dos alunos do DMV em medicina veterinária de equinos está descentralizada no polo da universidade em Alter do Chão, numa parceria com a Coudelaria de Alter que fez nascer a Unidade Clínica da Coudelaria de Alter (UCCA).
Essas instalações recebem os estudantes da universidade durante algumas semanas por semestre para a formação dedicada à saúde dos cavalos, uma espécie que tem vindo, ano após ano, a crescer em termos de necessidade de diferenciação profissional, pois, como admite Catarina Lavrador, “o mundo dos cavalos evoluiu muitíssimo” e já exige “do ponto de vista de equipamento e de serviços prestados, uma clínica muito diferenciada”.
Daí que esse polo do HVUE em Alter tenha em permanência três médicos residentes “que só trabalham equinos e, depois, três colegas docentes que estão cá e lá [entre o DMV e Alter do Chão]”, explica a diretora hospitalar.
A equipa de profissionais da UCCA realiza todo o trabalho de medicina preventiva equina em ambulatório, mas também tem as instalações e os equipamentos necessários para “fazer tudo o que é cirúrgico a nível de equinos. Tem salas de anestesia, salas de cirurgia, e acabam por, neste momento, ter mais condições lá para realizar esses procedimentos de uma forma mais controlada do que aqui no hospital”, acrescenta Teresa Oliveira.
A diretora clínica do HVUE sublinha ainda que esta espécie de CAMV especializado em saúde equina tem igualmente a capacidade instalada para realizar uma das vertentes mais procuradas pelos detentores de cavalos: a medicina de reprodução. “Os colegas têm as instalações do laboratório para realizar todos os exames que são necessários”, frisa Teresa Oliveira.
*Artigo publicado na edição 191, de março, da VETERINÁRIA ATUAL