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Médicos Veterinários

Evidência científica em medicina veterinária: Onde estamos e para onde caminhamos?

Todos os dias, várias vezes por dia, os médicos veterinários precisam tomar decisões clínicas. Que exame complementar de diagnóstico realizar? Qual o melhor plano terapêutico? Que fármaco administrar? A VETERINÁRIA ATUAL procurou perceber como essas decisões são tomadas quando a evidência científica disponível é escassa ou mesmo inexistente. Clínicos e professores universitários reconhecem que a medicina veterinária ainda tem um caminho a percorrer na disponibilização de evidência para suportar a decisão médica, mas já existem projetos no terreno a tentar colmatar as carências sentidas na prática clínica.

É muita a angústia que o profissional de medicina veterinária sente diariamente perante a necessidade de fazer um diagnóstico a um animal doente, se possível de forma rápida, e de escolher a terapêutica mais correta, que cause o menor grau de efeitos secundários possível. E às dúvidas que sente perante um caso clínico associa-se a pressão exercida por tutores ansiosos e temerosos quanto à saúde do animal de companhia, à qual se junta, não raras vezes, os orçamentos curtos das famílias para a prestação dos melhores cuidados.

 

No princípio e no fim de tudo é sempre a mesma questão que paira na mente do médico veterinário: Quais os melhores cuidados para este caso em particular?

Nem sempre a resposta é clara e nem sempre há evidência científica que suporte a decisão a tomar para tentar devolver a saúde e o bem-estar ao animal. Ou seja, nem sempre é possível praticar uma medicina veterinária baseada na evidência científica.

 

“Não conseguimos fazer uma prática clínica baseada 100% na evidência científica porque não existem dados para isso. Vamos ter de extrapolar e vamos ter de fazer muita coisa de forma empírica, não sabendo na realidade se o medicamento X ou Y vai funcionar naquela dose.” – Ruí Patrício, médico veterinário de animais exóticos

 

Se há profissional que lida diariamente com a falta de suporte científico à decisão clínica é Rui Patrício. O médico veterinário de animais exóticos da Allpets – Clínica Veterinária de Tires e professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina Veterinária de Universidade Lusófona reconhece à VETERINÁRIA ATUAL que o maior problema quando se fala de animais exóticos é o alargado número de espécies que esta designação comporta. Entre mamíferos, anfíbios, invertebrados, répteis, peixes, aves, são “imensas espécies” em cada uma das categorias e a investigação atualmente realizada não abarca, nem de perto nem de longe, todas as que chegam aos consultórios dos médicos veterinários. “A sorte é que algumas espécies de exóticos são usadas em estudos científicos sobre soluções terapêuticas para humanos ou para cães e gatos e o que fazemos na prática clínica é extrapolar [essa evidência]” para o animal em específico que têm à frente, explica Rui Patrício, que acaba por admitir: “Tudo isto é limitado em relação à evidência científica que usamos, porque estamos sempre a extrapolar”.

É limitado e, sobretudo, muito desafiante para o médico veterinário tomar decisões sobre a saúde de um animal sem ter muito, e por vezes mesmo nenhum, suporte científico que as sustente. E exige muito trabalho, muita pesquisa para estar o mais atualizado possível, muita troca de emails e muitas chamadas telefónicas com colegas nacionais e estrangeiros na tentativa de encontrar algum caso semelhante, perceber o que foi feito e os resultados obtidos.

 

Ainda assim, reconhece Rui Patrício, na medicina veterinária de exóticos “não conseguimos fazer uma prática clínica baseada 100% na evidência científica porque não existem dados para isso. Vamos ter de extrapolar e vamos ter de fazer muita coisa de forma empírica, não sabendo na realidade se o medicamento X ou Y vai funcionar naquela dose”, até porque vias de administração diferentes implicam absorções diferentes do fármaco e são reconhecidas as limitações inerentes ao maneio de um periquito de 15 gramas ou de uma tartaruga de 20 gramas.

À semelhança dos animais exóticos, outra área que tem vindo a crescer na prática clínica é a especialidade de oncologia, muito em virtude do aumento da esperança média de vida dos animais de companhia. E talvez por ser uma área que passou a ter relevo na medicina veterinária há relativamente poucos anos, também esta especialidade tem algumas carências ao nível da evidência científica para suportar decisões clínicas.

Segundo Joaquim Henriques, “o grande problema na medicina veterinária em geral, mas na oncologia em particular, é a falta de algumas guidelines, que já começaram a surgir, mas muito aquém do que é necessário”. O responsável pelo Centro de Referência em Oncologia do Hospital Anicura Atlântico, que é também professor auxiliar da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona e investigador do Centro de Investigação em Cancro do iNOVA4Health da Nova Medical School, considera que essas guidelines permitiriam uma estandardização do diagnóstico histológico e uma classificação homogénea dos tumores que daria mais certezas aos médicos de estarem a falar das mesmas entidades. A título de exemplo, Joaquim Henriques lembra que quando se fala em linfoma de alto grau de células B “no cão são, pelo menos, três entidades”, ao contrário do que acontece nos humanos, segundo a definição da Organização Mundial da Saúde.

No campo do diagnóstico, Nazaré Cunha, especialista europeia em Patologia Clínica Veterinária e diretora clínica da Vedis, um laboratório veterinário exclusivamente dedicado à patologia, reconhece que ainda são “escassas as guidelines e os consensos, assim como os estudos prospetivos em patologia, por comparação com a medicina humana” e também admite “que a evidência é muitas vezes o relato de casos únicos. Consequentemente, é dado maior ênfase ao reconhecimento de como se processam as decisões clínicas, tendo em conta o elevado nível de incerteza”.

Não obstante, a patologista clínica veterinária aponta alguns avanços nesta matéria, nomeadamente ao nível das guidelines em citologia, para a graduação e estadiamento de mastocitomas, e do “uso de técnicas complementares como a imunocitoquímica, a PARR e a citometria de fluxo que, quando devidamente implementadas, têm permitido aumentar a acuidade diagnóstica da citologia”.

Nesta matéria, Nazaré Cunha elogia a recente iniciativa Veterinary Cancer Guidelines and Protocols concebida para tentar “melhorar o nível de cuidados de saúde oferecidos aos animais, criando métodos de avaliação e de relatório estandardizados para tumores”.

Para Joaquim Henriques, as guidelines de estandardização seriam igualmente importantes para conhecer o prognóstico das várias patologias oncológicas nas diversas espécies e seriam determinantes para o desenho de estudos que avaliassem a resposta a determinados protocolos terapêuticos.

“O nível de evidência ainda é baixo na maioria dos estudos na oncologia. A sensação que tenho é que muitos clínicos, sobretudo das gerações mais antigas, ainda se baseiam muito naquilo que é a experiência pessoal o que tem um baixo nível de evidência científica.”- Joaquim Henriques, médico veterinário com prática em oncologia

Joaquim Henriques, médico veterinário no Centre Hospitalier Vétérinaire Frégis, em Paris, França. Rubrica Veterinários Portugueses pelo Mundo. Portugal

Aliás, o desenho da grande maioria dos estudos publicados na área da medicina veterinária, em específico na oncologia, também merecem reparo por parte de Joaquim Henriques, pois “os que existem são normalmente retrospetivos, raramente temos estudos randomizados, de dupla ocultação, controlados e as populações estudadas são pequenas, normalmente inferiores a 50 animais, o que condiciona o grau de evidência obtido” e, sobretudo, faltam revisões sistemáticas dos trabalhos publicados, tal como já acontece frequentemente na medicina humana. “Em medicina veterinária, normalmente faz-se um estudo, que alguém publica, e fica-se por ali. É raro ter situações em que temos repetições de estudos para validar os resultados anteriores”, reconhece o especialista em oncologia, o que o leva a afirmar: “O nível de evidência ainda é baixo na maioria dos estudos na oncologia. A sensação que tenho é que muitos clínicos, sobretudo das gerações mais antigas, ainda se baseiam muito naquilo que é a experiência pessoal, o que tem um baixo nível de evidência científica”.

A fragilidade da evidência científica disponível

Os testemunhos de Rui Patrício e de Joaquim Henriques dão voz a duas das áreas onde a carência de evidência científica é mais sentida. Aliás, são reconhecidas também por outros especialistas como sendo os âmbitos do saber médico veterinário onde mais se sente a falta de suporte à decisão clínica.

Assim o reforça Felisbina Queiroga, professora associada com agregação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), que reconhece o défice de conhecimento científico “nas espécies silvestres e também nas espécies exóticas, algumas delas emergentes – como os furões ou os porquinhos-da-índia – nas quais algumas doenças ainda são desconhecidas”.

A docente das unidades curriculares de medicina interna de animais de companhia e das optativas de geriatria e oncologia, acrescenta que também “em animais com doenças incuráveis ou no caso da oncologia em estádios clínicos avançados, quando só podemos fazer tratamentos paliativos, falta saber quais os [cuidados] mais indicados, o que devemos propor, saber quanto tempo vai viver o animal, são matérias em que ainda há muito a discutir e a investigar”.

A visão é partilhada por Manuel Sant’Ana, investigador e médico veterinário especialista europeu em Ciência, Ética e Direito do Bem-Estar Animal, ao lembrar em declarações à VETERINÁRIA ATUAL que, depois da mais recente atualização, “o formulário de terapêuticas da WSAVA para cães e gatos tem cerca de 500 páginas, enquanto o formulário para os animais exóticos, que comporta um número indeterminado de espécies, tem apenas 360 páginas”. Uma demonstração de que a quantidade de publicação científica disponível ainda é muito desigual.

Praticar uma medicina veterinária baseada na evidência é, nas palavras do médico veterinário investigador da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMVUL), “usar as melhores evidências e as mais relevantes, em conjunto com a experiência clínica, para tomar a melhor decisão possível para um determinado paciente, tendo em conta as circunstâncias que o rodeiam”. Contudo, é fundamental avaliar a qualidade da evidência científica disponível, já que “um estudo observacional não tem a mesma robustez que um estudo experimental controlado e, por sua vez, um único estudo não tem a mesma robustez que uma revisão sistemática de vários estudos”, acrescenta.

E tal como já tinha frisado Joaquim Henriques, Manuel Sant’Ana também lembra que o mais usual em medicina veterinária são os estudos de caso. “A falta de evidência é praticamente transversal a todas as áreas da medicina veterinária. Há muito poucos estudos randomizados e controlados, os que existem são muito baseados em estudos de caso e séries de casos”, explica o especialista europeu, para quem “a base de evidência que suporta muitas das práticas em medicina veterinária é extremamente frágil”. E dá como exemplos o recurso a anti-inflamatórios proteolíticos para o tratamento de edemas para os quais “não há qualquer evidência de que sejam eficazes a diminuir a inflamação e o edema” e a utilização de condroprotetores em animais com osteoartrite embora “a evidência da eficácia destes medicamentos seja reduzida, para não dizer nula”.

“A base de evidência que suporta muitas das práticas em medicina veterinária é extremamente frágil.” – Manuel Sant’Ana, investigador do EVIEDVET

Neste campo da evidência científica em medicina veterinária, o mais recente debate aberto na classe foi a utilização das chamadas terapêuticas não convencionais (TNC). A acupuntura, a homeopatia, a medicina tradicional chinesa ou a osteopatia têm vindo a ganhar espaço no mercado pela mão de alguns profissionais de medicina veterinária. Manuel Sant’Ana é dos mais críticos do recurso a estas práticas. “Não são nem medicina, no sentido de representarem um corpo bem estruturado e fundamentado do saber para que possa ser considerado uma medicina, não são alternativas, porque não substituem as terapêuticas convencionais, nem são complementares, na medida que o único efeito que têm é placebo”.

Aliás, o especialista cita os resultados de um estudo publicado na Veterinary Quarterly, no âmbito do projeto EVIEDVET, no qual se realizou uma análise de tendências bibliométricas no motor de busca PubMed MeSH que revelou um aumento global de publicações com termos relacionados com TNC nos últimos 20 anos, nomeadamente sobre extratos de plantas, óleos essenciais e plantas medicinais, e menos sobre acupuntura e homeopatia, ainda assim, reforça “não há evidência que permita sustentar muitas das afirmações de eficácia”.

Contudo, em 2019 a Ordem dos Médicos Veterinários incluiu a acupuntura no ato médico veterinário. Na visão de Manuel Sant’Ana tratou-se de uma “decisão estratégica”, da qual discorda, com o intuito de ter algum controlo ético e deontológico sobre quem utiliza a técnica em causa na medicina veterinária.

Uma das aplicações mais recorrentes da acupuntura nos animais de companhia é no maneio da dor oncológica. Joaquim Henriques aponta sobretudo a utilização nos casos de linfomas e de osteossarcoma, que “é muito doloroso” para o animal. Contudo, também o especialista em oncologia reconhece que “faltam estudos sólidos” que suportem esta utilização e que descrevam o protocolo a ser seguido em cada patologia.

Nesta matéria das TNC, Felisbina Queiroga começa por lembrar que o “o termo [terapia] precisa ser muito bem definido: é tudo o que é um tratamento médico aprovado para o uso em medicina veterinária e temos de procurar a evidência científica para a sua aplicação”. E apesar de a acupuntura já integrar o ato médico veterinário, na perspetiva da professora universitária “enquanto seres humanos autónomos, cada um é responsável por aquilo que faz. Quando se trata de atuar como médica veterinária com responsabilidade, de dar uma opinião avalizada, sinto-me mais confortável se o fizer à luz da evidência científica. Essa é a minha posição individual: reservo-me, enquanto médica veterinária, de não usar [TNC] enquanto não tiver evidência científica para tal”.

Ecossistema académico: ciência versus empirismo?

As questões relacionadas com a medicina veterinária baseada na evidência começam na formação pré-graduada. Rui Patrício também é professor universitário e reconhece a necessidade de sustentar o ensino na evidência publicada, de estar a par do que vai sendo divulgado pelas várias revistas científicas, e embora o acesso seja pago e ser “muito complicado ter acesso a todas”, defende que o ensino da medicina veterinária deve ser “baseado nessas publicações”.

Só que o especialista em animais exóticos também reconhece que ainda há profissionais, e por inerência professores universitários, que sustentam a prática clínica e o ensino no princípio de que “eu faço assim, já o faço há anos, e sempre se fez assim”, uma postura cada vez menos válida, consoante cresce o conhecimento científico publicado. “O ensino tem de ser muito cuidadoso. Temos de explicar aos alunos que não é por se fazer algo há anos que está correto e tentamos explicar isso com base na evidência que já existe”, e sobretudo, acrescenta, incutir nos discentes a necessidade de procurar essa evidência. Afinal, sustenta o especialista, “o conhecimento do dia-a-dia é a base da pirâmide do conhecimento, não o topo. Vale alguma coisa, mas temos de procurar saber mais e os alunos devem ser incentivados a ter esse espírito crítico”.

E será que os alunos já estão suficientemente despertos para as questões da medicina veterinária baseada na evidência?

Manuel Sant’Ana tem dúvidas. Na base das reticências do investigador está outro trabalho publicado no âmbito do projeto EVIEDVET, no qual se pesquisou se princípios como revisão sistemática, pirâmide de evidência, risco de viés – ou seja, conceitos básicos da evidência científica – estavam vertidos em seis dos oito currículos publicados pelas faculdades de medicina veterinária. “Encontrámos deficiências importantes nos currículos declarados em termos de medicina baseada na evidência, muito pouca avaliação crítica da literatura e interação das melhores evidências nas decisões clínicas”, descreve, além de, acrescenta, terem encontrado alguma integração do ensino das TNC “não no sentido crítico da robustez científica, mas como alternativa ou complementares às terapêuticas convencionais”.

A questão dos currículos dos cursos universitários suscita algumas dúvidas a Felisbina Queiroga. Frisa que apenas pode falar da experiência da UTAD, mas a especialista assegura que, do que conhece do programa curricular, “a preocupação em relação ao ensino baseado na evidência é transversal a todo o curso. Todos nós procuramos fundamentar o que ensinamos na evidência científica disponível”. Eventualmente, admite a professora universitária, pode ser necessário dar mais visibilidade e tornar mensurável o momento em que o aluno toma contacto com o conceito de evidência científica nos diferentes currículos das cadeiras e talvez até se possa alterar o desenho das fichas curriculares divulgadas para ser mais explícito o desenrolar dessa aprendizagem, muito embora Felisbina Queiroga assegure que será certamente difícil que estas explanem por completo tudo o que se leciona nas aulas teóricas e práticas.

E reconhecendo que “há sempre espaço para melhoria”, a docente voltou a sublinhar a importância de ter presente que “a medicina veterinária, enquanto ciência, é baseada na evidência científica, caso contrário não estaríamos a falar de um ato médico, mas de um ato empírico”.

Foram quase as mesmas palavras as que escutámos de João Niza Ribeiro sobre o ensino da medicina veterinária baseada na evidência. O professor auxiliar agregado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e coordenador da rede Vet-OncoNet considera que “a ciência está na base de toda a formação médica”, incluindo a medicina veterinária, e todo o conhecimento transmitido é fundamentado no conhecimento científico.

Na opinião do especialista, o que talvez falte esteja a faltar na medicina veterinária seja tornar mais acessível a quem está na prática clínica o conhecimento que vai sendo gerado pelos investigadores, facultando dados concretos que ajudem a responder a perguntas e a dúvidas que os médicos veterinários têm no quotidiano. João Niza Ribeiro considera mesmo que “o grande salto na medicina veterinária” acontecerá com o acesso ao conhecimento mais facilitado pelas novas ferramentas que têm como único propósito facultar evidência de forma rápida e credível para a implementar nas rotinas dos consultórios e hospitais veterinários.

*Leia o artigo de opinião na íntegra na edição 177, de dezembro, da VETERINÁRIA ATUAL

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