Quantcast
CAMV

Espaço Gato: Porque os felinos merecem (muito) uma clínica só para eles

Direitos reservados

De portas abertas desde 2018, o Espaço Gato tem contornado os desafios por estar localizado na Madeira e a equipa conseguiu transformar a clínica num local de acolhimento para seres com características especiais que formam os três vértices de um triângulo relacional único: gatos, tutores de gatos e profissionais que se dedicam à medicina felina.

Dificilmente quem entra neste centro de atendimento médico veterinário (CAMV) pode dizer que vai ao engano. O nome é bem explícito da atividade a que se dedica, chama-se Espaço Gato, e, logo na entrada, a equipa que recebe os clientes também não deixa margem para dúvidas. Além dos rececionistas humanos, quem chega é acolhido pela altiva Nana – a escultura mascote e “guia espiritual do espaço” que tudo vigia e a todos acolhe no seu coração cor-de-rosa – e é bem provável que se cruze com a Riscas, atarefadíssima nas suas atividades zen pelos sofás, que em linguagem felina significa fazer sestas e mais sestas, ou que tenha de fazer festas, muitas de preferência, à dupla Sinai e Batik, detentores da pasta dos mimos nesta equipa alargada.

Estes são alguns dos gatos que circulam livremente pela entrada do CAMV e têm, tal como o corpo profissional, as suas funções e tarefas na relação com os clientes. Não é muito comum ter animais soltos pelas instalações dos centros de atendimento, mas Cátia Oliveira, quando pensou na criação do Espaço Gato, desenhou em mente um conceito distinto do que é habitual ver na generalidade dos outros centros de atendimento. “Quisemos criar um espaço diferente das outras clínicas, onde as pessoas se sentissem em casa, acolhidas, não fosse um ambiente frio como as clínicas acabam por ter”, explica a diretora clínica deste CAMV. Na prática, concretizou esse espírito com a criação de uma zona com sofás na entrada do centro de atendimento, onde as pessoas que vão ao CAMV podem beber um café, ler sobre a temática felina ou requisitar livros para aprenderam mais sobre “esses seres tão especiais” e, claro, interagir com os elementos da equipa que têm pelo, habituados que estão ao movimento e ao contacto com clientes humanos e felinos. Eventualmente, se chega algum cliente felino menos sociável, que pode ficar perturbado com esta convivência estreita, é logo “direcionado para uma zona onde não há passagem de pessoas, nem de gatos para não se sentir ameaçado”, assegura a médica veterinária.

“Nunca pode haver pressa a lidar com esta espécie. É tudo no seu tempo, na sua calma, no seu espaço para que cada gato tenha a oportunidade de se revelar” – Cátia Oliveira, diretora clínica do Espaço Gato

Direitos reservados

Gatos: eventualmente, os futuros donos do Mundo

Este desejo de construir uma filosofia diferente na rotina de uma clínica veterinária foi crescendo na mente de Cátia Oliveira ao longo dos anos em que praticou medicina veterinária noutros CAMV. Após concluir o curso na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa e de algum tempo a trabalhar no Continente, regressou à sua Madeira Natal para exercer a profissão. Nesse caminho, o que via e exercia não a deixava completamente satisfeita. “Sempre senti na minha prática clínica que os gatos ficavam um pouco para segundo plano comparativamente com os cães. Não só em termos de prática clínica, como na disponibilidade de fármacos, o foco estava sempre mais nos cães”, admite a diretora clínica. A par desta evidência observada na prática clínica, enquanto pessoa e enquanto profissional, Cátia Oliveira, também foi percebendo que a sua personalidade “e a forma de abordar as consultas criava uma ligação forte com os gatos. A minha afinidade com estes animais é muito grande. Precisavam de um espaço só para eles, de terem toda a atenção e de desenvolvermos uma medicina veterinária voltada para eles”.

O fascínio pelos felinos sente-se em cada palavra da diretora clínica. A assertividade, a comunicação clara de quando estão satisfeitos ou, pelo contrário, algo lhes desagrada, eleva estas criaturas a um patamar “espiritual, são misteriosos, têm um lado quase oculto” que os faz estabelecer relações muito especiais com os humanos. Recorrendo ao sentido de humor, a médica veterinária diz com graça que, “se um dia for encontrada uma cura para a leucemia felina, e para as outras doenças infeciosas, os gatos vão dominar o mundo. Eles têm uma inteligência, uma astúcia, uma forma de estar que nos bate aos pontos”.

A personalidade tranquila, o tom de voz baixo e os gestos calmamente escorreitos intrínsecos a Cátia Oliveira têm sido, ao longo dos cerca de 20 anos de profissão, a chave da comunicação com os gatos. Eles entendem-na e ela lê-os numa linguagem própria de quem se dedica à medicina felina. “Nunca pode haver pressa a lidar com esta espécie. É tudo no seu tempo, na sua calma, no seu espaço para que cada gato tenha a oportunidade de se revelar. A primeira coisa que acontece, quando retiramos um gato do seu território, é expor a vulnerabilidade deles e, por isso, queremos que eles se sintam seguros aqui”, sublinha.

“É sempre mais fácil quando o gato é fofinho, vem para o colo, gosta de festinhas e ronrona, mas tem graça como os gatos que não têm essa relação física tão próxima com pessoas conseguem estabelecer relações de uma intensidade incrível com os tutores.” – Cátia Oliveira, diretora clínica do Espaço Gato

Direitos reservados

“Foi quase como um chamamento”

Por sentir o que sentia pelos gatos e ver o que via nos cuidados prestados à espécie na prática clínica, a médica veterinária garante que abrir o Espaço Gato apenas para os cuidados de saúde da espécie felina “foi quase como um chamamento” a que não soube, nem quis, dizer não.

Cátia Oliveira reconhece ser muito ligada à espiritualidade, à ligação entre humanos, animais e todo o espaço que os circunda e achou que estava na hora de entregar o que de melhor sabia fazer. No Funchal procurou uma localização em crescimento na cidade e encontrou, numa urbanização moderna, uma loja ampla que facilitava o desenho do CAMV que idealizava. “Desenhámos o projeto de raiz e conseguimos adaptar o espaço seguindo as guidelines da International Society of Feline Medicine (ISFM), que têm algumas características para as clínicas estarem de acordo com todas as necessidades dos gatos. Desde a receção, aos consultórios, o internamento, a sala de cirurgia, todos os espaços são o mais cat friendly possível a pensar no bem-estar deles e dos tutores”, lembra a diretora clínica.

Assim se construiu um espaço com dois consultórios, uma sala de cirurgia, uma sala de Raio X, uma enfermaria, uma sala de recobro e uma acolhedora receção que, em 2018, “é inaugurado no dia 7, do mês 7, às 7 horas e 7 minutos da tarde”, refere Cátia Oliveira, acentuando a ligação que mantém com a espiritualidade e o significado desse número. Aliás, até o nome da mascote foi intencional: “Nana significa sete em japonês”.

A acompanhar a diretora clínica desde início está a médica veterinária Sofia Nóbrega, depois juntou-se a médica veterinária Ester Caires, completando-se o restante quadro de profissionais veterinários com a enfermeira Elisa Pereira e as assistentes Patrícia Pestana e Adriana Sousa, além dos dois profissionais que asseguram a receção e da administrativa. A diretora clínica garante que conseguiu “reunir uma equipa de trabalho fantástica, que também tem uma afinidade grande com a espécie, o que tornou tudo muito mais fácil de concretizar”. O sinal emitido por qualquer um dos profissionais é sempre de respeito pelo temperamento do individual gato e de máxima redução de stress, comungando todos da mesma linguagem própria da medicina felina para que a visita seja o menos traumática possível para todos, principalmente para o felino.

“Uma área da medicina felina que tinha obrigatoriamente de estar presente era a medicina dentária/estomatologia porque as doenças orais dos gatos são imensas. Era impossível abrir uma clínica veterinária exclusiva de gatos sem ter essa valência.” – Cátia Oliveira, diretora clínica do Espaço Gato

Direitos reservados

Tutores: tão únicos e distintos como os próprios gatos

O dia a dia corre escorreito, com consultas realizadas com marcação, não menos de 30 minutos para cada cliente porque, afinal, os gatos precisam do seu tempo para se sentirem confortáveis em ambientes estranhos, os tutores precisam do seu tempo para contarem ao que vêm e os profissionais precisam do seu tempo para a realização da consulta respeitando o animal que têm à frente.

No fundo, estes três vértices de uma relação com a forma de triângulo, são constituídos por elementos carregados de especificidades e características distintas. Além da singularidade com que Cátia Oliveira caracteriza os gatos e os profissionais de medicina felina, a médica veterinária também considera que os tutores destes animais “são diferentes, sem dúvida”. “Têm uma forma de estar um pouco diferente, uma sensibilidade diferente. Mesmo com aqueles gatos que não são fáceis de tocar, que não permitem muito contacto físico, mesmo com esses os tutores conseguem criar relações intensas. É sempre mais fácil quando o gato é fofinho, vem para o colo, gosta de festinhas e ronrona, mas tem graça como os gatos que não têm essa relação física tão próxima com pessoas conseguem estabelecer relações de uma intensidade incrível com os tutores”, explica a diretora clínica.

E desengane-se quem associa a presença de gatos apenas a casas com idosos solitários, às vezes com mais de um animal. “Isso era antigamente, porque vejo que está a mudar muito. A variabilidade de tutores é muito grande: temos casais jovens, casais com mais idade, pessoas que vivem sozinhas de todas as idades. O gato é um animal relativamente fácil de ter em casa, mesmo em espaços pequenos, para o qual não é preciso ter força para passear na rua. É de fácil maneio no dia a dia”, revela.

Depois, existem mercados que Cátia Oliveira vê crescer com bastante dinâmica no Espaço Gato. Por um lado, a crescente procura por gatos de raça, que antigamente não era muito comum com os felinos, muito alicerçada nas partilhas dos tutores nas redes sociais e, por outro, o aumento da procura dos serviços da clínica por clientes estrangeiros. “Todas as semanas chegam-nos mais pessoas de outras nacionalidades”, assegura. Mas, pela porta do CAMV não entram apenas aposentados que vêm gozar a reforma no clima sempre soalheiro da Madeira. Entram cada vez mais pessoas jovens, os chamados nómadas digitais, que também procuram o arquipélago pelo bom clima e pela qualidade de vida, trazem com eles os animais de companhia ou adotam na ilha. E, assegura a diretora clínica, têm ficado “impressionados com o espaço e, para nós, é muito importante ter esse feedback. Têm gostado da nossa forma de trabalhar que é muito próxima, muito familiar. Ainda conseguimos ir mantendo esse carinho e essa proximidade do antigamente, que se está a perder um pouco”.

 “É um privilégio enorme poder estar na despedida deles”

A esperança média de vida de um gato permite, cada vez mais, estabelecer relações que podem durar décadas. Hoje, não raras vezes já se veem gatos com 20 anos e este triângulo relacional que junta os profissionais de saúde veterinária, os tutores e o animal vai estreitando afetos ao longo desse tempo. “Enche-nos o coração podermos seguir um gatinho desde pequenino até ao fim e para nós também é um privilégio enorme poder estar na despedida deles”, diz a diretora clínica.

Um privilégio que é também um desafio. O desafio da despedida de um ser que fez parte da vida dos profissionais e da família que o acolheu e para o qual a melhor resposta é o acolhimento da dor, permitido pela proximidade da equipa com os tutores e, igualmente, entre todos os profissionais, pois, admite a responsável, “as despedidas também têm muito impacto na equipa”.

“Quem se dedica de corpo e alma tem sempre essa fragilidade, mas estamos aqui para nos apoiarmos uns aos outros”, assegura a diretora clínica que acrescenta: “Temos uma proximidade muito grande entre nós, o que é importante. Aqui não é só o nosso trabalho, o que fazemos a quem nos visita, mas passamos a maior parte do nosso tempo na clínica e, por isso, temos uma dinâmica muito positiva. Para mim, é muito importante que as pessoas se sintam confortáveis e felizes a trabalhar aqui”.

Esse relacionamento estreito entre os profissionais tem sido o suporte nos momentos de maior dificuldade, nas partidas mais dolorosas, nas despedidas de animais que são mais do que apenas clientes. E, sobretudo, tem sido a estratégia para conseguir manter longe os problemas de saúde mental que tanto afetam a classe veterinária.

Esta “é uma temática que nos preocupa”, admite Cátia Oliveira, porque, “apesar de trabalharmos num sítio espetacular, em termos de ambiente, não deixamos de ter os desafios, os casos difíceis, as despedidas dolorosas, porque temos uma relação muito próxima com os tutores e não somos indiferentes a isso. Há momentos em que nos vamos baixo, faz parte”.

Conscientes dessa fragilidade, a equipa do Espaço Gato já fez uma formação em conjunto para saber como identificar precocemente os sinais de maior stress emocional, de ameaça de burnout e de como dar o devido apoio nessas alturas. “Estamos sempre atentos”, assegura a responsável.

Insularidade é um desafio e um motor de resiliência

A carteira de serviços do Espaço Gato foi pensada, como não podia deixar de ser, a partir das necessidades mais específicas da espécie. À cabeça, a saúde oral porque, explica Cátia Oliveira, as doenças orais dos gatos são imensas. “Uma área da medicina felina que tinha obrigatoriamente de estar presente que era a medicina dentária/estomatologia. Era impossível abrir uma clínica veterinária exclusiva de gatos sem ter essa valência”.

A equipa também tem apostado muito em formação contínua em medicina interna felina, realiza cirurgias, exames ecográficos e restante imagiologia, consultas de comportamento felino e, neste momento, a diretora clínica está a concluir um curso de medicina veterinária integrativa “para otimizar a nossa medicina convencional com ferramentas extra dirigidas a casos mais desafiantes, como os casos de Oncologia”. E é inegável a importância que esta área clínica está a ganhar no quotidiano veterinário, seja pelo aumento da esperança média de vida dos animais, seja pelo estilo de vida que também contribui para o aparecimento de outras doenças – como a obesidade e a insuficiência renal – que contribuem para o desenvolvimento de patologias oncológicas. Cátia Oliveira diz que “é preciso dar respostas a estes casos, aumentar a qualidade de vida dos animais com doenças crónicas. E, neste âmbito, penso que a medicina tradicional chinesa, a acupuntura, a ozonoterapia e outras ferramentas podem ser o caminho”.

Contudo, fazer formação a partir da ilha nem sempre é fácil. “Felizmente, as ferramentas online são muito boas”, reconhece a diretora clínica. A equipa tenta aumentar os conhecimentos através de cursos à distância, mas sempre que é necessário sair “é um esforço acrescido. Sabemos que [a insularidade] é uma condicionante, mas vale a pena e não há outra forma”, acrescenta.

Enquanto ilha, a Madeira não impõe apenas condicionantes à formação. O posicionamento do arquipélago acarreta “alguns desafios no fornecimento. Temos de ter sempre os fármacos necessários em stock porque estamos condicionados pelas condições climatéricas que obrigam o aeroporto a fechar muitas vezes. As análises também costumamos enviar para o Porto e precisamos ter um pouco de paciência e organização para não nos falhar nada”, admite a responsável.

No outro lado da moeda, a insularidade também fomenta o espírito colaborativo entre os profissionais. O Hospital Veterinário da Madeira é um parceiro do Espaço para os casos em que seja necessário recorrer a TAC ou para cirurgias mais específicas. Se noutras localizações a referenciação é uma importante ferramenta para responder às necessidades dos clientes, numa ilha “é muito importante apoiarmo-nos uns aos outros, porque cada um tem determinadas valências e é importante haver trabalho em equipa, para nos complementarmos”, remata Cátia Oliveira.

*Artigo publicado na edição 188, de dezembro, da VETERINÁRIA ATUAL

Este site oferece conteúdo especializado. É profissional de saúde animal?